AUTOMOTIVERESTART

A nova ordem do setor automotivo pós Covid-19

Publicado em 01/10/2020

A solução exige concertação política

Como gerar condições para mudanças na Indústria

A indústria automotiva, aqui considerada como a cadeia produtiva que culmina nos automóveis e veículos comerciais leves e as suas autopeças, é um complexo produtivo transnacional. Alguns poucos países produtores detém, no mundo, o savoir faire de como projetar um veículo, tomado o termo da forma mais ampla possível, como os Estados Unidos, alguns países da Europa, o Japão e a Coreia do Sul.

Muitos outros países têm montadoras de veículos instaladas em seu território, quase sempre com o amparo de um amplo e forte sistema de incentivos ao investimento, alguns com uma relativamente forte cadeia de suprimentos que, em alguns poucos casos, têm o suporte de uma competitiva indústria de base – siderurgia e não-ferrosos,  petroquímica e derivados (plásticos).

Essas montadoras, quase na sua totalidade, são extensões nacionais – filiais – das empresas instaladas nos países que primeiro desenvolveram o produto “automóvel” e que realizaram os investimentos necessários à sua produção. Nesse contexto situam-se, nas Américas, o Canadá, o México, o Brasil e a Argentina e, com menor expressão, o Equador e a Colômbia.

Tal situação estabeleceu, naturalmente, a ascendência dos países-matrizes, sobre os países que receberam as extensões das grandes montadoras de veículos, não só no design tecnológico dos veículos, mas em toda a estrutura da cadeia produtiva e, principalmente, na arquitetura do marco regulatório. O Brasil — que conta com montadoras de mais de 22 marcas, oriundas de diversos países da Europa, dos Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul e China – é exemplo desse desenho global.

É raro que países satélites, como o Brasil, produza algum tipo de tecnologia disruptiva. A criação da indústria de biocombustíveis, brasileira, porém, foi um evento desse tipo.  Primeiro veio o etanol – o álcool etílico carburante (1975 e após a decadência do Proálcool, houve em 2003 o revamping desse Programa, com o lançamento do carro flex fuel). Depois, o biodiesel, em 2004, além do bioquerosene e outros. É bom destacar que associados à tecnologia do uso veicular desses biocombustíveis estão presentes também uma densa cadeia produtiva agroindustrial, com todos os desdobramentos no desenvolvimento dos processos produtivos – inclusive dos bens de capital –, máquinas agrícolas e usinas de etanol, além de uma ação contínua em pesquisa e desenvolvimento, que têm dado sustentação a esse tremendo capital tecnológico e econômico-social nacional, tanto na produção daqueles combustíveis, quanto no desenvolvimento dos motores que o utilizam.

Esse tem sido o quadro no qual a indústria, no mundo e em nosso país, tem conduzido suas atividades até recentemente, quando forças modificadoras têm atuado com efeitos disruptivos, como as pressões pelo controle do clima global, que culminaram no Acordo de Paris e aceleraram o desenvolvimento de veículos elétricos e das suas baterias, assim como tornaram mais rigorosas as resoluções e diretivas governamentais – nos países da Europa e nos Estados Unidos[1], que são os líderes na regulação dos limites de emissões veiculares, com vistas, também, ao controle do meio ambiente.

O cenário até então vigente na indústria foi afetado pelos efeitos conjunturais da pandemia – queda de vendas e na produção de veículos, em todo o mundo (final de 2019 e 2020) — e essa superposição começou a mostrar um novo quadro, particularmente no Brasil, com componentes que não eram tão nítidos antes da pandemia. O aproveitamento ótimo do que pode se tornar a nova indústria automobilística e de biocombustíveis no país demanda, para além da capacidade técnica, uma habilidade para a concertação política, capaz de fazer acontecer as coisas que precisam acontecer.

Tomemos como exemplo três fatos recentes que não deveriam, mas estão sendo avaliados observados isoladamente:

1. Recentemente, a indústria montadora local iniciou um movimento para adiar por três anos as datas de entrada em vigência do cumprimento dos limites de emissões veiculares (CONAMA), dos requisitos obrigatórios de segurança veicular (CONTRAN e Rota 2030) e das novas metas de eficiência energética estabelecidas pelo Regime Rota 2030 (ME / ex MDIC).

2. Também recentemente foram detectados desvios de conduta por partes de alguns condutores de caminhões, que estariam burlando o cumprimento dos limites de emissões estabelecidos pelo PROCONVE P7 (Euro V): um dispositivo eletrônico emularia a leitura dos constituintes gasosos presentes nas emissões veiculares dos veículos, como se tivessem sido usados no pós-tratamento dos gases de escapamento, como prescreve a regulamentação em vigor, a adição de ARLA 32 (solução com 32% de ureia).

3. A relativamente recente crise gerada pelo não cumprimento das datas de implementação do PROCONVE P6 (Euro IV) mostrou que a contribuição ao volume de poluentes emitidos na atmosfera pela frota nacional de caminhões — que ainda rodam no país com tecnologias obsoletas, é bem superior ao volume de poluentes que seria evitado com a implementação de uma fase seguinte do PROCONVE.

Essas considerações não pretendem fazer a apologia da não implementação de programas governamentais de controle do meio ambiente , mas, sim, chamar a atenção para uma questão óbvia: a da premente necessidade de se retirar veículos obsoletos das vias de rodagem, tanto pelos motivos ambientais e climáticos, como pelos motivos amplamente estudados e documentados do impacto dessa triste realidade, na segurança viária, na saúde pública e na competitividade e produtividade do serviço de transporte de cargas no Brasil.

No dantesco quadro de pandemia — em que se estabeleceu a dicotomia entre a progressão oficial do marco regulatório automotivo e a alegada dificuldade de caixa das empresas montadoras para cumpri-lo –, o Brasil começa a receber a onda deflagrada, principalmente nos países da Europa, com a importação de veículos elétricos, aqui tratados em seu amplo sentido. As contribuições das políticas industriais, como a da eficiência energética, por exemplo, são convergentes com a chamada “eletrificação” dos veículos que são comercializados no país.

Nunca é demais rememorar que o mercado automotivo brasileiro tem a sua oferta estabelecida por montadoras, cujas matrizes têm outra realidade de matriz energética, de renda e onde o veículo elétrico já é um alvo no contexto da descarbonização do sistema de transporte. Diante desse ambiente multifacetado, sobrevém a questão que passa a ser fundamental: o Estado ficará inerte diante das pressões internacionais de oferta do veículo elétrico contrapostas à realidade nacional, que detém um significativo capital econômico-social e tecnológico com os biocombustíveis? Para auxiliar na resposta, há que se antecipar que, se nada for feito, a indústria automotiva nacional será remodelada nos moldes desenhados pelos reguladores dos países onde as fabricantes são sediadas. Isto é, na visão otimista. Na pessimista, a nova ordem da indústria pode eliminar a cadeia produtiva local metalmecânica. O Brasil passaria de um expressivo produtor de automóveis a uma nação predominantemente importadora de veículos elétricos.

À primeira vista, tal questionamento poderia ser visto com as lentes de um conservadorismo xenofóbico que a história já mostrou, felizmente, que quase nunca é vitorioso, mas a questão envolve aspectos mais profundos que transcendem os limites tradicionais do Estado.

Ao se tomar conhecimento das diretrizes que nortearam a elaboração das Contribuições Nacionalmente DeterminadasNDC’s que o Brasil adotou, para ratificar o Acordo de Paris (novembro de 2016 – Congresso Nacional), constata-se que os biocombustíveis podem dar grande contribuição à redução das emissões de GEE – Gases Geradores de Efeito Estufa –  , além do uso em grande escala de energias renováveis no contexto da matriz energética brasileira[2].

Desse modo o quadro referido acima começa a ser delineado. Claras estão as linhas que demandam um enfoque sistêmico e, portanto, não isolado, a exigir uma concertação política que considere todos os aspectos e nuances aqui tratados:

  • A manutenção das datas de vigência do marco regulatório automotivo em seu atual tripé – emissões, segurança e eficiência energética – ou, o seu adiamento em bases razoáveis, não exclui a necessidade de fiscalização para o cumprimento das fases do PROCONVE em vigor. Tampouco exclui a necessidade concomitante de um vigoroso programa de retirada das ruas de veículos inadequados, programa esse precedido de uma eficaz ação de inspeção técnica veicular, com cronogramas para sanar os desvios de conformidade.
  • A eventual prorrogação das datas de vigência do marco regulatório automotivo propiciaria a oportunidade de aperfeiçoamento/correção de algumas normas em vigor, notadamente as que consideram as contribuições emissivas do etanol, por exemplo.
  • A ratificação pelo Brasil do Acordo de Paris, cujas diretrizes que resultaram nas NDC’s que — por sua vez compuseram as nossas metas e compromissos de redução dos GEE –, no tempo, apontaram a necessidade de um ente governamental para coordenar as ações necessárias ao cumprimento daquelas metas, enquanto ressaltou o papel institucional do MRE, nesse contexto, circunscrito às relações internacionais que forem pertinentes.
    • Essa postura indicada na página do MRE que noticia a ratificação do Acordo de Paris pelo Brasil vem ao encontro da necessidade maior que o quadro descrito neste artigo apresenta: há a necessidade, também, de um ente governamental que transcenda a visão horizontal econômica e integre, por meio de uma articulação técnica e política, todos os agentes públicos e privados envolvidos, com vistas à construção de um modelo que considere todas as vertentes aqui mencionadas.
  • Atualmente, os agentes governamentais relacionados aos temas aqui tratados estão locados em diversos órgãos assessores do Poder Executivo. Política Industrial, Meio Ambiente, Energia, Mobilidade Urbana, Controle do Clima e Infraestrutura são tratados em diversos ministérios. Talvez a Casa Civil da Presidência da República, pudesse aglutinar essas competências e articular a necessária concertação política, necessária à construção de uma modelagem que contemplasse todas os eixos aqui discorridos.

[1] A despeito da polêmica flexibilização estabelecida pelo Governo de Donald Trump, recentemente.
[2] Disponível online em: https://www.mma.gov.br/images/arquivos/clima/convencao/indc/BRASIL_iNDC_portugues.pdf

Paulo Sérgio Coelho Bedran
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