Quando se fala em capacidade industrial, o que primeiro vem à mente é a habilidade de fazer produtos em larga escala. Também se fala muito em capacidade ociosa, especialmente no Brasil, onde a crença em uma capacidade industrial de 4,2 milhões de carros atormenta muita gente. O caso é que o conceito de capacidade industrial anda um bocado defasado e incompleto, algo que eu percebi ao ler recentemente um texto excelente sobre o estado da defesa dos EUA.
No artigo (confira aqui), Elliot Ackerman defende que seu país perdeu capacidade industrial ao recordar uma conversa que teve com Gilman Louie, um investidor de alto risco em tecnologia. Os dois debatiam se os EUA estavam ou não vulneráveis. Ackerman, um ex-fuzileiro condecorado, disse que, como o país era (e é) líder em tecnologia bélica, isso o tranquilizava. Para Ackerman, essa liderança lhe dava a certeza de que o país era plenamente capaz de se defender. Foi quando Louie perguntou a ele quem era o líder em tecnologia bélica na Segunda Guerra Mundial. O ex-fuzileiro se deu conta de que o título cabia à Alemanha nazista.
Como ele descreveu em seu texto para The Free Press, “o problema para os alemães é que eles não tinham capacidade industrial. Os Aliados venceram o Eixo com tecnologia inferior que podia ser produzida em massa.”
Um exemplo que Ackerman deu em seu texto é que os tanques M1 Abrams não fizeram grande diferença para a resistência ucraniana à invasão russa. Por outro lado, a Ucrânia foi o primeiro país sem uma Marinha importante a ganhar uma batalha naval ao derrotar a Rússia na disputa pelo Mar Negro. Drones de 3 mil dólares, capazes de destruir um M1 Abrams de 10 milhões de dólares, mudaram o jogo a favor dos ucranianos.
Resumindo, ter uma arma avançadíssima não adianta nada se ela custar muito caro e puder ser destruída por coisas mais baratas e fáceis de operar. O que importa é a efetividade da arma, não o quanto ela é sofisticada. E uma arma efetiva é barata e fácil de produzir. Se custar 10 milhões de dólares ou mais, será necessariamente restrita a não ser que o orçamento seja ilimitado, o que é uma contradição em termos. Ou é orçamento ou é ilimitado. É incrível como isso se aplica bem à indústria automotiva. Na batalha por ganhar mercado e vender cada vez mais, ela perdeu capacidade industrial.
Você vai dizer que isso é loucura quando tanta gente reclama de capacidade ociosa, mas pense comigo. Em que ter a capacidade de fazer 4,2 milhões de carros ajudou o Brasil? Em 2023, foram feitas apenas 2,204 milhões de unidades, ou 2 milhões a menos do que o país se imagina capaz. Sejamos francos: a definição clássica de capacidade industrial é uma história da carochinha porque não reflete a realidade. Não adianta nada ter como fabricar algum produto se você não sabe exatamente o que deve produzir. Por isso o conceito merece ser expandido.
Veja o caso do Ford Modelo T. Ele não foi o pioneiro na produção em série, como muita gente acredita. O Oldsmobile Modelo R, mais conhecido como Curved Dash, aplicou a ideia em 1901. Apesar do pioneirismo, não passou de 19.000 unidades. O Modelo T, lançado em 1908, bateu a marca de 15 milhões de vendas. Para atingir esses números, a Ford teve de criar capacidade industrial. Em outras palavras, foi o sucesso do carro que a trouxe a reboque, não o contrário. Compare esse caso com o relativamente recente fechamento das fábricas da marca no Brasil. A capacidade industrial da Ford no país valeu muito pouco para ela. Longe de sumir do Brasil, ela agora vende, com lucro, o que fabrica em outros países.
É evidente que capacidade industrial vai muito além de ter uma fábrica pronta para o trabalho. O produto a ser feito ali importa muito mais. No caso da Ford, ela precisava de um Modelo T moderno, que fosse igualmente efetivo: robusto, acessível e fácil de consertar e de manter. Quem já tem mais idade vai se lembrar do lançamento do Chevrolet Corsa no Brasil. A GM não dava conta de fazer tudo que as pessoas queriam comprar. Havia ágio sobre o preço do carro: quem tinha um para vender cobrava um extra.
De certa forma, trazer o Fusca de volta às linhas de produção foi o que Itamar Franco achou que restituiria capacidade industrial à Volkswagen e à indústria brasileira. O finado presidente só errou a época. A seu tempo, o Fusca foi outro ótimo exemplo do que isso realmente significa. O Renault Logan, que nasceu como Dacia em 2004, foi o último exemplo mundial do que a verdadeira capacidade industrial significa. Ele deu ao mundo um sedã do tamanho de um Toyota Corolla da época pelo preço de um carro de entrada.
Fábricas podem ser fechadas num piscar de olhos. Construí-las é mais lento, mas também não adianta se elas não tiverem o que produzir. O que realmente define capacidade industrial são produtos com demanda, que as pessoas desejam e podem comprar. Qual foi o último lançado no Brasil que preencheu esses requisitos? O que é preciso fazer para repetir a receita e recuperar uma capacidade industrial verdadeira? Lembrem-se de Elliot Ackerman: quem não tem capacidade industrial (de verdade) perde a guerra.